Maioria entre gamers no Brasil, mulheres enfrentam preconceito e assédio
Não é todo dia que uma brasileira conquista o 1º lugar no ranking mundial do Super Street Fighter IV: Arcade Edition, um dos mais populares games de luta de todos os tempos. A responsável pela façanha em 2013 é a paulista Cristina Santos, uma empresária de 31 anos do ramo de pisos industriais e carretos que, nas horas vagas, gosta de jogar videogame.
A proeza, no entanto, não traz só boas recordações.
Cristina “Olakristal” Santos foi alvo da ira de haters que não aceitaram que uma mulher invadisse um território historicamente dominado por homens. “Passei maus bocados. Sofri ataques em redes sociais e até na vida pessoal. É uma fase que prefiro esquecer”, confessa a jogadora que, anos depois, quebrou outro tabu no universo gamer ao se tornar a brasileira com o maior gamerscore na plataforma Xbox: 294.619 pontos.
Quando Cristina começou a se interessar por consoles, lá pelos 12, 13 anos, Vittória Dutra Pirró ainda não tinha sequer nascido. Mineira de Poços de Caldas, ela só tem 16 anos, mas já conhece bem os lados bom e ruim de ser uma gamer girl.
Em 2015, Vittória realizou o sonho de se tornar uma atleta profissional de League of Legends (LoL) após ser selecionada entre mais de seis mil candidatos. Sua escalação, como já era de esperar, suscitou protestos.
Muitos questionavam a capacidade de uma gamer de apenas 14 anos, outros diziam que sua escolha teria sido jogada de marketing.
“Minha mãe conta que, infelizmente, esse preconceito vem de longe”, relata Vittória. “Quando criança, ela não podia jogar videogame porque era considerado um brinquedo de menino”.
“Quando comecei a jogar, tive amigos que ficaram enciumados, diziam que eu não tinha potencial e, sempre que podiam, me colocavam para baixo. Procurei me distanciar deles”.
‘Pega uma cerveja’
Um levantamento de 2012 revela que 63% das 874 jogadoras entrevistadas pelo blog PriceCharting já sofreram assédio em jogos online. Em alguns casos, as jogadoras são obrigadas a ouvir comentários machistas do tipo “Volta pra cozinha, volta!”, “Já terminou de lavar a louça?” ou, então, “Pega uma cerveja pra mim”. Em outros, são vítimas de propostas indecentes e cantadas ofensivas.
“Como qualquer garota gamer, já sofri assédio, preconceito e xingamento. Mas, ao contrário da maioria, resolvi lidar de maneira diferente: as ofensas servem de incentivo para melhorar meu desempenho e conquistar meu espaço”, diz a paulistana Pamella “Pan” Shibuya, 23.
Por causa do assédio, 35% das jogadoras optaram por dar um tempo no joystick. Outras 9% tomaram uma decisão mais drástica: mudaram de hobby. Por essas e outras, a goiana Carol “Mystique” Melo, 27, adotou algumas estratégias de sobrevivência na selva online: uma delas é usar “nickname” masculino para despistar os misóginos virtuais. Outra é desligar o microfone quando não conhece os demais integrantes do time.
“No mundo dos games, não existe sexo forte ou frágil. Jogamos de igual para igual. Mesmo assim, sofro pressão, não só de jogadores, mas de espectadores e patrocinadores. Se meu time joga mal, sou sempre a culpada!”, queixa-se Carol que, em 2014, representou o Brasil no CrossFire Stars 2, a Copa do Mundo da modalidade, realizado em Chengdu, na China.
‘Praticamente só existia a Lara Croft’
Para muitos, entre as razões para tanta resistência a mulheres nesse universo está a sub-representação feminina nos videogames.
A fundadora do blog Feminist Frequency (Ativismo Feminista), a canadense-americana Anita Sarkeesian, 33 anos, há anos critica a representação machista e estereotipada da figura feminina na cultura pop, em particular nos videogames.
Em uma série de vídeos em que comenta o assunto, ela diz que, na maioria dos jogos, as mulheres não passam de prêmios, vítimas ou objetos sexuais. Em um de seus vídeos mais famosos, Anita detona o mais recorrente dos clichês das narrativas digitais: o da donzela em perigo.
A forte reação aos vídeos de Anita defendendo a igualdade de gênero nos videogames dá uma ideia da misoginia que ronda esse mundo. Ele enfrentou uma violenta onda de assédio e ódio online, com ameaças de estupro e morte, e teve informações pessoais distribuídas por hackers.
Ela chegou a ter de cancelar uma palestra na Universidade Estadual de Utah (EUA), depois que os administradores do campus receberam uma ameaça de ataques de integrantes do movimento virtual GamerGate.
A psicóloga Ivelise Fortim, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), diz que “em geral, as mulheres não se reconhecem em personagens de videogame: seja por sua excessiva fragilidade, seja por sua hipersexualização”, mas vê sinais de mudanças.
“Hoje em dia, temos muito mais jogos protagonizados por heroínas do que há alguns anos, quando praticamente só existia a Lara Croft, da série Tomb Raider.”
E, mesmo assim, o número de mulheres fortes, destemidas e que conseguem se virar sozinhas ainda é bastante reduzido nos games. Em 2012, a Design e Pesquisa de Entretenimento Eletrônico (EEDAR, em inglês), uma empresa de consultoria especializada em games, teve a curiosidade de analisar 669 títulos com protagonistas de gênero reconhecível e constatou que apenas 24 deles (menos de 4%) tinham mulheres como protagonistas exclusivas.
Já são maioria
Na comunidade brasileira de eSports, meninas como Cristina, Vittória, Pamella e Carol deixaram de ser minoria. Segundo dados da Pesquisa Game Brasil 2016, as mulheres já representam 52,6% dos jogadores brasileiros. Um ano antes, eram 47,1%.
Realizada em fevereiro de 2016 pela agência de tecnologia Sioux em parceria com a Blend New Research e a ESPM, o estudo aponta ainda que 34% têm entre 25 e 34 anos, 55% preferem jogos de estratégia e 80% curtem jogar com os filhos.
A crescente participação do público feminino na comunidade gamer já pode ser notada no Brasil Game Show (BGS), a maior feira de jogos eletrônicos da América Latina. “Na última edição, 28% do público eram mulheres”, calcula Marcelo Tavares, fundador e CEO da BGS.
Até pouco tempo atrás, elas só iam ao evento para fazer companhia aos maridos, filhos e amigos. Hoje, testam novos títulos, disputam torneios virtuais, etc.
“Precisamos entender que não há jogos para homens ou jogos para mulheres. Há ótimos jogos que podem e devem ser apreciados por jogadores de ambos os sexos, sem preconceito ou discriminação”, defende Marcelo.
Se o índice de jogadoras já passou da metade, o de jogos desenvolvidos por mulheres não chega a 10%. Por isso, a designer de games Ariane Parra resolveu fundar, em 2014, a Women Up Games, que promove a inclusão de mulheres, tanto jogando quanto desenvolvendo, na indústria do videogame.
A start-up organiza desde palestras sobre a representatividade feminina no universo online até workshops para desenvolvimento de novos títulos.
“Podemos ser diferentes em muitos aspectos, mas, pelo menos, temos algo em comum: o amor pelos games. Se, um dia, nós conseguirmos mostrar para o público feminino, cis e trans que jogar todo mundo junto é muito mais divertido, teremos atingido nosso objetivo”, ambiciona Ariane.